sexta-feira, maio 05, 2023

Monumento ao motociclista "HOMO VIATOR" 2013 PORTUGAL BARCELOS

À procura de um conceito

Vivemos aceleradamente num tempo quase sem fronteiras a separar-nos e o espaço, por mais distante que seja em termos geográficos, nunca como agora parece ficar aqui tão perto. E os meios de transporte, subindo os limites da velocidade percorrem as redes viárias galgando territórios e continentes no fio da vertigem, da rapidez e da facilidade. Vivemos sob o signo do homo viator: viajante ou viandante compulsivo por prazer libertário ou por imperativos do ofício. É o que acontece neste começo do século XXI, à força da fobia causada pelas grandes metrópoles, entupidas de semáforos vermelhos de toda a espécie. Uma força irresistível atira-o para fora dos arames farpados dos horários e dos trajectos a cumprir. Mais do que o imediato mudar de ares, é a vontade de liberdade que o impele a quebrar rotinas e o faz rumar para o incerto onde não há destino traçado. Por isso, lança-se à aventura na volúpia do partir e do seguir traçados erráticos e aziagos. Neste fazer-se à estrada ou ao asfalto, livre como o vento primaveril que sente no rosto, reside o fascínio do homo viator pelo desconhecido e pela velocidade terminal. Porque não se sente bem, amarrado às grilhetas do imobilismo, feito presa das pegajosas teias sociais que cerceiam essa vontade de viver a quatro pulmões como andarilho apátrida seguindo os ciclos matriciais da Natureza e do Tempo renovador. Porque se sente renascer sempre que o asfalto vai deixando para trás os lugares e as coisas já conhecidas, sorvendo novos odores e novas visões na vertigem desse vórtice libertador que se renova a cada metro da paisagem que vai ficando para trás. Sabendo que a vida é sempre renovadora o viajante renova-se viajando numa espécie de eterno retorno. Como na poética magistral do castelhano António Machado: «Não há caminho (amigo), o caminho faz-se caminhando». E quanto mais se avança, mais a linha do horizonte se afasta traçando um novo limite a desvendar.
Esta é uma metáfora da vida ao assinalar que há questões existenciais cujas respostas escapam a qualquer tentativa de aproximação. Muito embora, paradoxalmente, é essa impossibilidade de resposta que vem avivar, cada vez mais, a vontade de voltar a enfrentar, sem desânimos, novo desafio. Logo, essa vontade viageira de chegar sempre mais além, de peregrinar por montes e vales sorvendo fragrâncias de liberdade e prazer, em ritual sublimado pelas dinâmicas ocultas do inconsciente, leva o homo viator a arrostar-se com a sua condição limítrofe de habitante da fronteira, nessa zona raiana que medeia a vida e a morte, a razão e a loucura, o mundo e o mistério. Ao assumir-se como fronteiriço, e revendo-se como sendo limite do mundo, o homo viator, desafiando a lógica dos pragmatismos conjunturais, deixa para trás não sabe bem o quê porque tudo aparece indefinido, e, tomado por um poder oculto que também desconhece, voa pelo asfalto fora ao encontro de qualquer coisa que o chama segredando e o impele para mais longe, sempre para lá da linha do horizonte.
Assim se cumpre o desígnio de ser livre, em jornada longa, onde o prazer e a adrenalina da velocidade fazem com que ele ignore os perigos tão próximos quanto imprevistos. Porque é tempo de partir chegando. Porque é tempo de chegar partindo.
Aspectos formais
A escultura é composta por um motociclo, um motociclista e uma acompanhante, fundidos em bronze patinado, assentes sobre uma placa de aço cor-Ten (6m X 1,5m X 8mm de espessura), calandrado assimetricamente nas extremidades, que, por sua vez, assenta sobre um bloco de granito em forma de paralelepípedo deitado (1m X 1m X 1,5m). O peso global do conjunto ronda as 6 toneladas, distribuindo-se as massas volumétricas e as componentes dinâmicas da escultura sobre uma rotunda de 19 metros de diâmetro, de acordo com as orientações plásticas e estéticas dos autores e em sintonia com os serviços e normativas camarárias e ambientais. A rotunda será arrelvada apenas e, para o assentamento do conjunto escultórico, será montada uma base em betão armado sobre o qual assentará o bloco de granito, enquanto a parte frontal da chapa recurvada será suportada por uma pedra de granito a servir de base.
Referências simbólicas
Não se pretende definir qual o significado das formas que compõem o grupo escultórico, apesar de nelas transparecer a ideia de homenagear o motociclismo. Embora se saiba que a verdadeira obra de arte não pode ficar-se por uma definição concisa em termos de significação, julgamos pertinente descrever algumas pistas que possam servir de possíveis chaves para ajudarem na descoberta de sentidos. Estes serão sempre da responsabilidade do observador, cabendo a cada um imaginar os cenários propiciados pelos estímulos recebidos. Por isso, para além de não haver um único significado, tudo o que aqui ficar dito não passa de uma tentativa de dar a conhecer alguns pontos de vista dos autores. Serão meros pontos de partida. Apenas isso.
Anteriormente, foram expressas algumas ideias sobre o conceito de homo viator. Com este título pretende-se abrir horizontes mais amplos quanto às linhas de leitura, evitando-se o hábito de se cair em definições circunscritas ao conceito único, sempre redutor. Além disso, é nossa intenção prolongar o eco das reverberações simbólicas centradas na condição humana, garantindo-se a responsabilidade maior da arte que obriga a interrogar sobre as questões do Homem, do Mundo e de Deus. Afinal, quem somos, o que é que fazemos aqui, e qual será o nosso destino final.
O símbolo é o único meio que nos permite tentar chegar às zonas interditas do pensamento às quais não é possível aceder pela via da lógica racional. Logo, ele é uma espécie de salvo-conduto que pode entreabrir portas que permanecem cerradas perante as arremetidas fácticas da razão. Ou pode ser uma espécie de arma de arremesso lançada na direcção do enigma ou do mistério. Mesmo assim, o símbolo opera de forma indirecta e analógica, e por defeito, restando sempre um núcleo duro que permanece hermeticamente fechado face á vontade fáustica de pretender conhecer ou desvendar todas as respostas, sejam quais forem os problemas ou os desafios. Isto significa, definitivamente, que a grande obra de arte apresenta sempre um remanescente simbólico que resiste a toda tentativa de descodificação lógica. Apenas as emoções podem indiciar as reverberações em forma de eco dessas presenças enigmáticas, obscuras e indefinidas que, a partir do cerco hermético, se nos apresentam em desafio na fronteira dos sentidos, onde não há palavras para uma descrição objectiva. Porque a arte é sempre subjectiva no que respeita à descodificação de sentidos ou de significados. Apenas conhecemos o significante, ou seja, aquilo que vemos, lemos ou ouvimos em forma de corpo material sensível, pertencente a este mundo objectivo. Quanto ao significado, será apenas pela via simbólica que de forma indirecta e analógica podemos chegar, e sempre por defeito, a forçar a porta que se entreabre ao sagrado, ao enigma e ao mistério, entidades últimas que se escondem nesse sombrio cerco hermético, como nos é proposto pelo grande filósofo espanhol, Eugenio Trías, na sua filosofia do limite.
Nisto reside o cerne, o poder último e insubstituível do símbolo que transparece sob as formas sensíveis da obra de arte. E, como se vem afirmando, pertence ao observador, a cada um de nós, a todos, a tarefa (aliciante e difícil ao mesmo tempo) de forçar, por todos os meios, os patamares mais obscuros e distantes do reino dos sentidos e dos significados que se nos apresentam pela via simbólica. Ora, esta via, este caminho irregular, íngreme e fronteiriço faz parte dos itinerários revisitados pelo homo viator, aqui apresentado no disfarce de motociclista: uma poderosa forma de se dar a conhecer.
A rotunda apresenta-se no cruzamento de duas vias que percorrem a cidade de Barcelos, de nascente para poente e de norte para sul. Sobre uma pedra de granito, trabalhada em paralelepípedo, estende-se uma chapa de aço patinado pela ferrugem do tempo e, sobre esta, por sua vez, apresenta-se um conjunto modelado em bronze e formado por um motociclo montado por um homem e uma mulher, orientados para poente. Estão dados os significantes e respectivos significados directos e óbvios. Mas, será apenas isso que vemos? Ou tratar-se-á de uma máscara sob a qual se disfarça o homo viator – viajante eternamente insatisfeito?
Os romanos desenhavam as cidades traçando duas grandes vias que se cruzavam num ponto para eles sagrado onde era escavado um poço ou cripta no qual depositavam as relíquias do deus ou do herói fundador. Era o sacerdote (áugure) que, investido desse poder, procedia à contemplação do movimento diurno do sol e, à noite, estudava o posicionamento dos astros, das estrelas e, em particular, da estrela polar. Ficavam, assim, determinados dois grandes eixos: o cardus, no sentido norte/sul, dado pelo posicionamento da estrela polar, e o decumanus, percorrendo a direcção solar de leste para oeste. Finalmente, com um arado puxado por bois, abriam um sulco que constituía o desenho do perímetro da cidade sobre o qual eram erguidas as muralhas. Fora destas ficava a selva inóspita e desabitada: terra estranha que era preciso conhecer, abrindo vias para esse efeito e porque os caminhos levavam ao conhecimento desses sítios ermados. Enquanto a cidade ficava protegida pelos bons augúrios, era necessário correr riscos nefastos para se poder atravessar o desconhecido. Cabia aos batedores assumirem esse risco, aventurando-se na direcção do desconhecido, à descoberta de novas fronteiras.
Talvez a rotunda possa ser uma pequena cidade dentro da grande metrópole. Por que não? E a chapa de aço não poderá ser um pedaço dessa via romana, ou um infinitésimo da grande via da nossa vida, que se vai renovando a cada dia que passa, a caminho de um possível mas desconhecido fim final que perdurará para além da própria morte? Por que não? Ou será o asfalto da liberdade? E a inclinação que apresenta a nascente, porventura, não poderá significar que viemos não se sabe de onde, e, por sua vez, a curvatura a poente não poderá simbolizar a descida à terra ou o retorno ao ventre matricial, à Magna Mater, cumprida a breve passagem pelo planalto da vida? E o verde da relva que tudo cerca não poderá colorir de esperança um novo renascimento para além desse inexorável regresso à matéria que se apresenta como sinal de finitude? Mas, mesmo que tudo acabe na morte, será que o tempo e a matéria não são eternos? E a pedra será apenas isso, ou será que se pode descobrir nela uma referência à solidez das bases da nossa vida ou, em ambivalência, significar os acidentes e obstáculos de percurso que teremos de saber transpor com inteligência e dignidade? E o motociclo, por que é que se apresenta voltado para poente, ou quais serão as causas que justificam a pátina rugosa que esconde o polimento? Ou será que a massa informe donde parece emergir, ou que o mantém prisioneiro nessa espécie de cárcere orgânico e barrento, possa ser o testemunho de mil partidas e de outras tantas chegadas? Ou serão os escombros metafóricos dos perigos dessas viagens?
As interrogações aumentam com as presenças do homem e da mulher. Poder-se-á perguntar por que é que diferem tanto no vestuário e nas atitudes corporais. Será que neles se conjuntam passado e futuro? Por que é que o rosto masculino está voltado para norte e o feminino para sul, enquanto o motociclo segue o sentido traçado pelo decumanus? Poderá ser importante uma referência aos quatro pontos cardeais? E qual será o significado da mão da mulher sobre a mão do homem? A quem caberá, aqui, o papel de anjo protector? E a concentração/apreensão estampada no rosto masculino em contraste com a jovialidade primaveril da cara feminina? Para quem será que a mulher levanta a mão? Será em sinal de despedida, ou saudação no momento da chegada? Ou será antes a exteriorização incontrolável da alegria de viver? Ou será aquele gesto profundo de liberdade, um convite a ser-se livre quando a tormenta ameaça os horizontes sociais, económicos e culturais? Ou poderemos descobrir, aí, uma saudação grávida de esperança, lançada ao futuro por uma juventude bela, disponível, atenta, confiante e solidária? Porque gosta de sair, de sair sempre, mesmo quando é obrigada a regressar ao abrigo familiar, sempre acolhedor perante os acidentes nefastos que ensombram a liberdade e a dignidade humanas. Quantas mais interrogações não poderiam ser formuladas? Cabe ao leitor continuar a boleia, estrada fora.
Para finalizar esta viagem simbólica cita-se a última estrofe de «Fala do Homem Nascido», poema magistral de António Gedeão:
Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.
A mensagem versa sobre o sangue marinheiro de outrora, que se renova, agora, sobre os asfaltos deste país ou pelo mundo fora. O símbolo torna os destinos infinitos, mesmo que se siga na demanda da estrela polar. Por isso, parafraseando o poeta, mesmo mortos havemos de passar. Ou não faremos nós parte do universo desse homo viator, que nos desafia a procurar fronteiras desconhecidas, para lá das fronteiras da família, do país ou do mundo, e sem que a natureza delas importe muito. Aqui, o motociclista manifesta-se como homo viator, e as estradas percorridas são pedaços de uma vida vivida com qualidade, em liberdade e assombro. Assombro perante o dom da vida. Em liberdade e dignidade, gozando estranhamente a vertigem de se viver sobre o fio da navalha. Ou como se percorresse uma corda suspensa sobre o abismo cavado entre as margens da vida e da morte. Porque, ali, a corda tem para ele a segurança e o fascínio da ponte que se estende para a outra margem do mistério e do inominável.
Resta-nos manifestar a nossa profunda gratidão ao Moto Galos, de um modo muito especial ao seu presidente e a todos os elementos da direcção. Sublinhamos a atenção, a disponibilidade, a paciência e a sensibilidade que sempre demonstraram durante as várias fases do processo, eficientemente coadjuvados pela drª Márcia. Os nossos agradecimentos à Edilidade e ao arquitecto … pelo apoio técnico superiormente prestado. Sabemos que ficamos em dívida para com todos e com a cidade de Barcelos, pelo privilégio de termos tido a possibilidade de dar corpo a este projecto. Bem hajam!
Forjães, 11 de Maio de 2013
Os autores
Mendanha
Vânia Mendanha
Nuno Mendanha




O gesto realçado pelo toque de um dedo numa superfície de barro é diferente da marca impressa por um utensílio. Os cunhos marcados por um martelo pneumático são diferentes das incisões provocadas por um ponteiro ou um cinzel. O movimento de um pincel sobre uma tela de linho acarreta determinadas propriedades. E o sentido movimentacional de um mouse ou de uma caneta óptica também perpetua diferentes direcções estéticas na pantalha de um computador. Assimilar a unicidade da técnica e harmonizá-la com as idiossincrasias de cada um é tão relevante como construir uma linguagem coesa que traduza de forma consciente uma obra no seu tempo. A Mão, pelas suas aptidões de tacto e de preensão, através do cérebro, reafirma a compreensão, o conhecimento, a memorização das formas e a identificação do Meio. Saramago também já nos esclareceu que "O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo agora, quando nos parece que passou adiante delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar numa ferramenta, a dilaceração aguda do raspador, a mordedura do ácido na chapa, a vibração contida de uma folha de papel deitada, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo."
Apoiado nas palavras do Mestre, com toda a humildade, poderemos afirmar que a mão é também uma via de comunicação da dialéctica das relações humanas. Se deu à humanidade a sua marca pessoal, individualizou-a, e permitiu-lhe concretizar o pensamento através do desenho. Impulsionou a evolução do pensamento e da cultura, bem como a emergência da Humanidade que se tornou criadora “pelo espírito e pela mão” no seu derradeiro gesto Adâmico.
Esta foto ilustra o tal derradeiro gesto que descrevemos. Vânia Mendanha, que por motivos profissionais anda sempre ausente das fotos das nossas esculturas, tem sempre essa árdua tarefa: acarreta em si a dura contenda de dar os últimos toques compositivos em todas as esculturas. Neste caso, está num duelo formal com o rosto da figura feminina da escultura "Homo-Viator".














2 comentários:

Mila disse...

Obrigado por suas explicações claras e esforço na criação de conteúdo significativo.

Casumo disse...

Sua postagem foi um destaque! Sua escrita é excelente. Continue com o excelente trabalho e escreva mais!