sexta-feira, maio 05, 2023

Monumento ao motociclista "HOMO VIATOR" 2013 PORTUGAL BARCELOS

À procura de um conceito

Vivemos aceleradamente num tempo quase sem fronteiras a separar-nos e o espaço, por mais distante que seja em termos geográficos, nunca como agora parece ficar aqui tão perto. E os meios de transporte, subindo os limites da velocidade percorrem as redes viárias galgando territórios e continentes no fio da vertigem, da rapidez e da facilidade. Vivemos sob o signo do homo viator: viajante ou viandante compulsivo por prazer libertário ou por imperativos do ofício. É o que acontece neste começo do século XXI, à força da fobia causada pelas grandes metrópoles, entupidas de semáforos vermelhos de toda a espécie. Uma força irresistível atira-o para fora dos arames farpados dos horários e dos trajectos a cumprir. Mais do que o imediato mudar de ares, é a vontade de liberdade que o impele a quebrar rotinas e o faz rumar para o incerto onde não há destino traçado. Por isso, lança-se à aventura na volúpia do partir e do seguir traçados erráticos e aziagos. Neste fazer-se à estrada ou ao asfalto, livre como o vento primaveril que sente no rosto, reside o fascínio do homo viator pelo desconhecido e pela velocidade terminal. Porque não se sente bem, amarrado às grilhetas do imobilismo, feito presa das pegajosas teias sociais que cerceiam essa vontade de viver a quatro pulmões como andarilho apátrida seguindo os ciclos matriciais da Natureza e do Tempo renovador. Porque se sente renascer sempre que o asfalto vai deixando para trás os lugares e as coisas já conhecidas, sorvendo novos odores e novas visões na vertigem desse vórtice libertador que se renova a cada metro da paisagem que vai ficando para trás. Sabendo que a vida é sempre renovadora o viajante renova-se viajando numa espécie de eterno retorno. Como na poética magistral do castelhano António Machado: «Não há caminho (amigo), o caminho faz-se caminhando». E quanto mais se avança, mais a linha do horizonte se afasta traçando um novo limite a desvendar.
Esta é uma metáfora da vida ao assinalar que há questões existenciais cujas respostas escapam a qualquer tentativa de aproximação. Muito embora, paradoxalmente, é essa impossibilidade de resposta que vem avivar, cada vez mais, a vontade de voltar a enfrentar, sem desânimos, novo desafio. Logo, essa vontade viageira de chegar sempre mais além, de peregrinar por montes e vales sorvendo fragrâncias de liberdade e prazer, em ritual sublimado pelas dinâmicas ocultas do inconsciente, leva o homo viator a arrostar-se com a sua condição limítrofe de habitante da fronteira, nessa zona raiana que medeia a vida e a morte, a razão e a loucura, o mundo e o mistério. Ao assumir-se como fronteiriço, e revendo-se como sendo limite do mundo, o homo viator, desafiando a lógica dos pragmatismos conjunturais, deixa para trás não sabe bem o quê porque tudo aparece indefinido, e, tomado por um poder oculto que também desconhece, voa pelo asfalto fora ao encontro de qualquer coisa que o chama segredando e o impele para mais longe, sempre para lá da linha do horizonte.
Assim se cumpre o desígnio de ser livre, em jornada longa, onde o prazer e a adrenalina da velocidade fazem com que ele ignore os perigos tão próximos quanto imprevistos. Porque é tempo de partir chegando. Porque é tempo de chegar partindo.
Aspectos formais
A escultura é composta por um motociclo, um motociclista e uma acompanhante, fundidos em bronze patinado, assentes sobre uma placa de aço cor-Ten (6m X 1,5m X 8mm de espessura), calandrado assimetricamente nas extremidades, que, por sua vez, assenta sobre um bloco de granito em forma de paralelepípedo deitado (1m X 1m X 1,5m). O peso global do conjunto ronda as 6 toneladas, distribuindo-se as massas volumétricas e as componentes dinâmicas da escultura sobre uma rotunda de 19 metros de diâmetro, de acordo com as orientações plásticas e estéticas dos autores e em sintonia com os serviços e normativas camarárias e ambientais. A rotunda será arrelvada apenas e, para o assentamento do conjunto escultórico, será montada uma base em betão armado sobre o qual assentará o bloco de granito, enquanto a parte frontal da chapa recurvada será suportada por uma pedra de granito a servir de base.
Referências simbólicas
Não se pretende definir qual o significado das formas que compõem o grupo escultórico, apesar de nelas transparecer a ideia de homenagear o motociclismo. Embora se saiba que a verdadeira obra de arte não pode ficar-se por uma definição concisa em termos de significação, julgamos pertinente descrever algumas pistas que possam servir de possíveis chaves para ajudarem na descoberta de sentidos. Estes serão sempre da responsabilidade do observador, cabendo a cada um imaginar os cenários propiciados pelos estímulos recebidos. Por isso, para além de não haver um único significado, tudo o que aqui ficar dito não passa de uma tentativa de dar a conhecer alguns pontos de vista dos autores. Serão meros pontos de partida. Apenas isso.
Anteriormente, foram expressas algumas ideias sobre o conceito de homo viator. Com este título pretende-se abrir horizontes mais amplos quanto às linhas de leitura, evitando-se o hábito de se cair em definições circunscritas ao conceito único, sempre redutor. Além disso, é nossa intenção prolongar o eco das reverberações simbólicas centradas na condição humana, garantindo-se a responsabilidade maior da arte que obriga a interrogar sobre as questões do Homem, do Mundo e de Deus. Afinal, quem somos, o que é que fazemos aqui, e qual será o nosso destino final.
O símbolo é o único meio que nos permite tentar chegar às zonas interditas do pensamento às quais não é possível aceder pela via da lógica racional. Logo, ele é uma espécie de salvo-conduto que pode entreabrir portas que permanecem cerradas perante as arremetidas fácticas da razão. Ou pode ser uma espécie de arma de arremesso lançada na direcção do enigma ou do mistério. Mesmo assim, o símbolo opera de forma indirecta e analógica, e por defeito, restando sempre um núcleo duro que permanece hermeticamente fechado face á vontade fáustica de pretender conhecer ou desvendar todas as respostas, sejam quais forem os problemas ou os desafios. Isto significa, definitivamente, que a grande obra de arte apresenta sempre um remanescente simbólico que resiste a toda tentativa de descodificação lógica. Apenas as emoções podem indiciar as reverberações em forma de eco dessas presenças enigmáticas, obscuras e indefinidas que, a partir do cerco hermético, se nos apresentam em desafio na fronteira dos sentidos, onde não há palavras para uma descrição objectiva. Porque a arte é sempre subjectiva no que respeita à descodificação de sentidos ou de significados. Apenas conhecemos o significante, ou seja, aquilo que vemos, lemos ou ouvimos em forma de corpo material sensível, pertencente a este mundo objectivo. Quanto ao significado, será apenas pela via simbólica que de forma indirecta e analógica podemos chegar, e sempre por defeito, a forçar a porta que se entreabre ao sagrado, ao enigma e ao mistério, entidades últimas que se escondem nesse sombrio cerco hermético, como nos é proposto pelo grande filósofo espanhol, Eugenio Trías, na sua filosofia do limite.
Nisto reside o cerne, o poder último e insubstituível do símbolo que transparece sob as formas sensíveis da obra de arte. E, como se vem afirmando, pertence ao observador, a cada um de nós, a todos, a tarefa (aliciante e difícil ao mesmo tempo) de forçar, por todos os meios, os patamares mais obscuros e distantes do reino dos sentidos e dos significados que se nos apresentam pela via simbólica. Ora, esta via, este caminho irregular, íngreme e fronteiriço faz parte dos itinerários revisitados pelo homo viator, aqui apresentado no disfarce de motociclista: uma poderosa forma de se dar a conhecer.
A rotunda apresenta-se no cruzamento de duas vias que percorrem a cidade de Barcelos, de nascente para poente e de norte para sul. Sobre uma pedra de granito, trabalhada em paralelepípedo, estende-se uma chapa de aço patinado pela ferrugem do tempo e, sobre esta, por sua vez, apresenta-se um conjunto modelado em bronze e formado por um motociclo montado por um homem e uma mulher, orientados para poente. Estão dados os significantes e respectivos significados directos e óbvios. Mas, será apenas isso que vemos? Ou tratar-se-á de uma máscara sob a qual se disfarça o homo viator – viajante eternamente insatisfeito?
Os romanos desenhavam as cidades traçando duas grandes vias que se cruzavam num ponto para eles sagrado onde era escavado um poço ou cripta no qual depositavam as relíquias do deus ou do herói fundador. Era o sacerdote (áugure) que, investido desse poder, procedia à contemplação do movimento diurno do sol e, à noite, estudava o posicionamento dos astros, das estrelas e, em particular, da estrela polar. Ficavam, assim, determinados dois grandes eixos: o cardus, no sentido norte/sul, dado pelo posicionamento da estrela polar, e o decumanus, percorrendo a direcção solar de leste para oeste. Finalmente, com um arado puxado por bois, abriam um sulco que constituía o desenho do perímetro da cidade sobre o qual eram erguidas as muralhas. Fora destas ficava a selva inóspita e desabitada: terra estranha que era preciso conhecer, abrindo vias para esse efeito e porque os caminhos levavam ao conhecimento desses sítios ermados. Enquanto a cidade ficava protegida pelos bons augúrios, era necessário correr riscos nefastos para se poder atravessar o desconhecido. Cabia aos batedores assumirem esse risco, aventurando-se na direcção do desconhecido, à descoberta de novas fronteiras.
Talvez a rotunda possa ser uma pequena cidade dentro da grande metrópole. Por que não? E a chapa de aço não poderá ser um pedaço dessa via romana, ou um infinitésimo da grande via da nossa vida, que se vai renovando a cada dia que passa, a caminho de um possível mas desconhecido fim final que perdurará para além da própria morte? Por que não? Ou será o asfalto da liberdade? E a inclinação que apresenta a nascente, porventura, não poderá significar que viemos não se sabe de onde, e, por sua vez, a curvatura a poente não poderá simbolizar a descida à terra ou o retorno ao ventre matricial, à Magna Mater, cumprida a breve passagem pelo planalto da vida? E o verde da relva que tudo cerca não poderá colorir de esperança um novo renascimento para além desse inexorável regresso à matéria que se apresenta como sinal de finitude? Mas, mesmo que tudo acabe na morte, será que o tempo e a matéria não são eternos? E a pedra será apenas isso, ou será que se pode descobrir nela uma referência à solidez das bases da nossa vida ou, em ambivalência, significar os acidentes e obstáculos de percurso que teremos de saber transpor com inteligência e dignidade? E o motociclo, por que é que se apresenta voltado para poente, ou quais serão as causas que justificam a pátina rugosa que esconde o polimento? Ou será que a massa informe donde parece emergir, ou que o mantém prisioneiro nessa espécie de cárcere orgânico e barrento, possa ser o testemunho de mil partidas e de outras tantas chegadas? Ou serão os escombros metafóricos dos perigos dessas viagens?
As interrogações aumentam com as presenças do homem e da mulher. Poder-se-á perguntar por que é que diferem tanto no vestuário e nas atitudes corporais. Será que neles se conjuntam passado e futuro? Por que é que o rosto masculino está voltado para norte e o feminino para sul, enquanto o motociclo segue o sentido traçado pelo decumanus? Poderá ser importante uma referência aos quatro pontos cardeais? E qual será o significado da mão da mulher sobre a mão do homem? A quem caberá, aqui, o papel de anjo protector? E a concentração/apreensão estampada no rosto masculino em contraste com a jovialidade primaveril da cara feminina? Para quem será que a mulher levanta a mão? Será em sinal de despedida, ou saudação no momento da chegada? Ou será antes a exteriorização incontrolável da alegria de viver? Ou será aquele gesto profundo de liberdade, um convite a ser-se livre quando a tormenta ameaça os horizontes sociais, económicos e culturais? Ou poderemos descobrir, aí, uma saudação grávida de esperança, lançada ao futuro por uma juventude bela, disponível, atenta, confiante e solidária? Porque gosta de sair, de sair sempre, mesmo quando é obrigada a regressar ao abrigo familiar, sempre acolhedor perante os acidentes nefastos que ensombram a liberdade e a dignidade humanas. Quantas mais interrogações não poderiam ser formuladas? Cabe ao leitor continuar a boleia, estrada fora.
Para finalizar esta viagem simbólica cita-se a última estrofe de «Fala do Homem Nascido», poema magistral de António Gedeão:
Com licença! Com licença!
Que a barca se fez ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.
Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.
A mensagem versa sobre o sangue marinheiro de outrora, que se renova, agora, sobre os asfaltos deste país ou pelo mundo fora. O símbolo torna os destinos infinitos, mesmo que se siga na demanda da estrela polar. Por isso, parafraseando o poeta, mesmo mortos havemos de passar. Ou não faremos nós parte do universo desse homo viator, que nos desafia a procurar fronteiras desconhecidas, para lá das fronteiras da família, do país ou do mundo, e sem que a natureza delas importe muito. Aqui, o motociclista manifesta-se como homo viator, e as estradas percorridas são pedaços de uma vida vivida com qualidade, em liberdade e assombro. Assombro perante o dom da vida. Em liberdade e dignidade, gozando estranhamente a vertigem de se viver sobre o fio da navalha. Ou como se percorresse uma corda suspensa sobre o abismo cavado entre as margens da vida e da morte. Porque, ali, a corda tem para ele a segurança e o fascínio da ponte que se estende para a outra margem do mistério e do inominável.
Resta-nos manifestar a nossa profunda gratidão ao Moto Galos, de um modo muito especial ao seu presidente e a todos os elementos da direcção. Sublinhamos a atenção, a disponibilidade, a paciência e a sensibilidade que sempre demonstraram durante as várias fases do processo, eficientemente coadjuvados pela drª Márcia. Os nossos agradecimentos à Edilidade e ao arquitecto … pelo apoio técnico superiormente prestado. Sabemos que ficamos em dívida para com todos e com a cidade de Barcelos, pelo privilégio de termos tido a possibilidade de dar corpo a este projecto. Bem hajam!
Forjães, 11 de Maio de 2013
Os autores
Mendanha
Vânia Mendanha
Nuno Mendanha




O gesto realçado pelo toque de um dedo numa superfície de barro é diferente da marca impressa por um utensílio. Os cunhos marcados por um martelo pneumático são diferentes das incisões provocadas por um ponteiro ou um cinzel. O movimento de um pincel sobre uma tela de linho acarreta determinadas propriedades. E o sentido movimentacional de um mouse ou de uma caneta óptica também perpetua diferentes direcções estéticas na pantalha de um computador. Assimilar a unicidade da técnica e harmonizá-la com as idiossincrasias de cada um é tão relevante como construir uma linguagem coesa que traduza de forma consciente uma obra no seu tempo. A Mão, pelas suas aptidões de tacto e de preensão, através do cérebro, reafirma a compreensão, o conhecimento, a memorização das formas e a identificação do Meio. Saramago também já nos esclareceu que "O cérebro da cabeça andou toda a vida atrasado em relação às mãos, e mesmo agora, quando nos parece que passou adiante delas, ainda são os dedos que têm de lhe explicar as investigações do tacto, o estremecimento da epiderme ao tocar numa ferramenta, a dilaceração aguda do raspador, a mordedura do ácido na chapa, a vibração contida de uma folha de papel deitada, a orografia das texturas, o entramado das fibras, o abecedário em relevo do mundo."
Apoiado nas palavras do Mestre, com toda a humildade, poderemos afirmar que a mão é também uma via de comunicação da dialéctica das relações humanas. Se deu à humanidade a sua marca pessoal, individualizou-a, e permitiu-lhe concretizar o pensamento através do desenho. Impulsionou a evolução do pensamento e da cultura, bem como a emergência da Humanidade que se tornou criadora “pelo espírito e pela mão” no seu derradeiro gesto Adâmico.
Esta foto ilustra o tal derradeiro gesto que descrevemos. Vânia Mendanha, que por motivos profissionais anda sempre ausente das fotos das nossas esculturas, tem sempre essa árdua tarefa: acarreta em si a dura contenda de dar os últimos toques compositivos em todas as esculturas. Neste caso, está num duelo formal com o rosto da figura feminina da escultura "Homo-Viator".














Escultura Nossa Senhora das Dores 2021 Caldas de São Jorge

O tempo, esse maior pedagogo do mundo, com a sua rectidão de que o caminho prossegue inevitavelmente para o local onde sempre nos esperam, acaba por nos expor sem qualquer preparação às chagas na carne, às chamas e à morte, sentenciando-nos como marca eterna uma existência limitada. Quando sentimos que a mão da sombra, delicadamente, nos dá um pequeno toque no ombro, a vida ilumina-se de uma outra forma e descobrimos capacidades maravilhosas de que nem sequer imaginávamos possíveis. Somos seres do limite onde a morte é, de facto, o deixar de existir, o deixar de estar, é o fim, no entanto não é a finalidade da vida. Por isso, toda a acção para a qual nos sentimos incapazes se nos revela inaceitável, crua e dura. Para se ter um sentido crítico do húmus das grandes coisas é necessária uma Maior alma. Estamos a falar da forma como vemos o mundo e isso está intrinsecamente relacionado com a nossa dimensão. O que importa não é o que vemos mas a forma como o vemos.
A arte manifesta sempre um âmbito simbólico aberto às mais diversas interpretações, não podendo apresentar um sentido unívoco. Por isso, exige a complementaridade estabelecida pela significação pessoal criada pelo fruidor. Onde não pode haver imposições exteriores em detrimento dos discursos ditados pelos poderes da chamada inteligência passional do observador.
Faz parte da condição humana a dicotomia fragilidade/superioridade protetora. A vida, motivo de assombro, agora ainda mais posta à prova pela Pandemia que testa ao máximo a nossa capacidade de resiliência, por vezes, obriga a que se estenda a mão à procura de proteção perante a dificuldade também física e haverá sempre uma outra ajuda (da providência, ou de Deus, ou da instituição social, ou do médico, do padre, da família, do amigo, do companheiro de caminhada…) parecendo a lista não mais acabar. Seja por fé, convicção ou outra razão inexplicável, todos sabemos que o importante é acreditar.
A escultura deve abrir-se, pois, às ideias que cada um quiser dela construir. Logo, mais importante do que as ideias do autor, será o rasto passional que a escultura possa gerar nos outros. Ao libertar-se, por inteiro, das mãos do seu criador, para ganhar uma vida própria que possa ultrapassar os limites impostos pelas conjunturas epigonais determinadas pela época da sua implantação.
Oxalá o bronze e a pedra (da Escultura de Nossa Senhora das Dores) possam suscitar emoções e sentidos polissémicos em cada observador. E, porque a figura feminina pode não ser simplesmente uma figura feminina, ou a pedra pode não ser apenas uma base de pedra, aqui fica o repto para que todos possam e devam fazer as «suas» próprias leituras, porque há sempre uma porta por abrir. Basta, então, que cada um se deixe levar pelas suas emoções, sem influências alheias, porque o encontro com a arte será sempre um encontro pessoal, íntimo e radicalmente singular. Oxalá o bronze (que aporta o barro moldado também por crianças da própria freguesia e que sempre são o progresso da mundo e único garante da longevidade da Humanidade)e a pedra possam ser símbolos de eternidade para todos aqueles( como Domingos Alves de Pinho) que, tanto no passado, como no presente ou no futuro, deixaram ou venham a deixar marcas indeléveis e exemplos superiores de nobreza, generosidade solidária, coragem e despojamento por solo de Caldas de São Jorge.
Sempre em sua proteção e também com a fé da Mãe Celestial, da Nossa Senhora das Dores e com as palavras proferidas vindas do âmago de todas as Mães terrenas (personificadas em Maria) ... onde Debaixo do teu Manto Protetor nos colocamos.
Porque juntos somos mais fortes que o chão. Para a Eternidade, assim como o Sr. Domingos, sem o qual esta Escultura não existiria. Para o professor Doutor Rui Alexandre, Amigo de todos os tempos, um agradecimento muito especial porque sem a sua mediação todo o projeto seria impossível. 













MONUMENTO DOM AFONSO HENRIQUES 2018 BRASIL RIO DE JANEIRO

 O primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques (1111/1185), ficou na história como «o Conquistador», pela determinação e arrojo com que levou a cabo a reconquista e alargamento para sul do pequeno Condado Portucalense. Foi, pois, um guerreiro destemido e consequente, e, ao mesmo tempo, um político hábil que soube ultrapassar as labirínticas negociações com o Papa para conseguir o reconhecimento e a independência do reino de Portugal, em 1143, pelo Tratado de Zamora. A visão, modelada no barro e fundida no bronze, com cerca de 250cm de altura e 900kg de peso, é a de um guerreiro apoiado com firmeza na perna esquerda enquanto a direita avança, sondando cautelosamente o espaço e o tempo em devir; as mãos seguram a espada contra o corpo, horizontalmente, em sinal de trégua momentânea, mas também de último argumento disponível para entronizar as ideias forjadas e defendidas; e, se a cruz dos Templários une, sobre o peito, os quatro pontos cardeais, o escudo com a cruz de Cristo, sobre as costas, remete, simbolicamente, para a “sabedoria prudencial” de quem soube proteger-se das ciladas urdidas no decorrer dos tempos passados. Se o futuro é o destino sonhado, este só pode argumentar-se na firmeza das memórias vivas do passado ancestral que, no presente, carregamos e testemunhamos. Assim, o bronze, como material perene, abre em chave hermenêutica, a possibilidade de uma abordagem sempre intemporal, de um passado memorizado, entranhado de lendas e mitos, que no presente vivemos e recriamos, e que poderemos catapultar para um futuro sempre incerto, sabendo que somos apenas um elo (com suas firmezas e fragilidades) de uma cadeia universal que se vai renovando eternamente. Porque a vida é um combate permanente que deixa cicatrizes, mesmo quando as vitórias parecem ser totais. Logo, na figura do primeiro rei de Portugal, o rei fundador, poderemos reconhecer um pedaço heroico da trama da nossa história, sem perdermos de vista que essa poderá ser também a imagem de cada um de nós, postados frente aos desafios do futuro, munidos de espada, cota de malha e escudo, como metáforas do poder mental, sabiamente justo, argumentado e defendido, enquanto a coroa pode conotar a ideia de prémio pelos patamares de transcendência e excelência alcançados, numa vida norteada pelo verdadeiro combate travado com as contradições negativas da própria consciência. Por outro lado, se a cruz é sempre sinal de interceção ou ponto de encontro de caminhos, nela poderá metaforizar-se a ideia de apaziguamento interior conseguido à custa de uma autêntica «cruzada» travada, tenazmente, contra os fantasmas e os instintos negativos que fazem parte da condição humana, numa caminhada individual orientada em prol do coletivo. Por isso, a figura apresenta essas escoriações do tempo, marcadas sobre o corpo, alertando-nos para a ideia de combate que a própria vida encerra, e sabendo-se que esse combate será sempre uma luta regeneradora que cada um terá de travar contra esse sinistro duplo de si próprio, rosto do “inumano”, que, por dentro, vai minando e corroendo. E será desse combate travado, em que cada um ao sair vencedor, cauterizadas as feridas, ganha o estatuto de cidadão fronteiriço ou de habitante das fronteiras do mundo, daí estendendo o pé para tentar avançar à conquista desse cerco ou âmbito de mistério que, em desafio, se apresenta para além dos confins do mundo e da própria existência. Se a perna esquerda está presa à matéria, a direita liberta-se para avançar na direção desse âmbito desconhecido e misterioso que nos transcende e que sentimos desafiar-nos a cada momento da nossa vida. Estas breves ideias ou linhas de pensamento são apenas (e só) pontos de partida para que cada um possa construir as suas próprias narrativas, tentando descortinar os significados ocultos que só o próprio pode descobrir, sabendo que a obra de arte nunca se apresenta com significados determinados e fixos na origem. Pelo contrário, a verdadeira obra de arte, pelo poder do símbolo, sabe flutuar sempre para lá do conhecimento e das tentativas de descodificação total, abrindo-se indeterminadamente a novas ideias como acontece com a água límpida da fonte que eternamente se renova. 

Estamos profundamente gratos à Ex. ma Direção da Casa do Minho do Rio de Janeiro, nas pessoas do seu ilustre presidente e do dr. Paulo Ribeiro, pelo privilégio do desafio que nos foi lançado, e pela confiança em nós depositada. Sentimo-nos verdadeiramente honrados e reconhecidos. Bem hajam todos. 

Importa sublinhar o alcance e o significado que esta obra tem para nós, pois, sendo um trabalho destinado ao Brasil, sentimos o peso e a responsabilidade implícitos, visto tratar-se de um país com um legado artístico ímpar. Logo, conhecedores do nível de exigência, ajudou-nos muito o facto de nascermos perto de Guimarães (onde nasceu Dom Afonso Henriques) e de conhecermos os principais factos históricos da sua vida.

Poder-se-á afirmar que somos feitos do mesmo húmus. Sentimo-nos, passe a expressão, como se fossemos da família, e, de facto, em cada pedaço de barro colocado na modelação do corpo sentíamos o pulsar da vida desse grande guerreiro, símbolo da afirmação nacional e da vontade de vencer. Oxalá que a obra venha a constituir um elo, por mais humilde que seja, a estreitar as relações entre dois povos irmanados pela história.

Os autores,

Vânia Mendanha

Mendanha

Nuno Mendanha

2018 








Em memória de ANTÓNIO GUEDES

Iluminado por um céu límpido de Sol de Novembro, quiçá pintado pelos Deuses Antigos ou outra Maior Providência, talvez a homenagear o brilho dos gessos efectuados pelo Mestre na Arte da Escultura, por solo de Olival, foi assim a despedida física de António Guedes. 62 anos dedicados ao processo clássico da passagem de uma escultura em barro para gesso, num corpo estóico de 75 anos que representa valores facilmente identificáveis que subsistirão muito tempo depois da sua partida para a Eternidade: a começar pela entrega total à Estética com Ética e só possível por uma profunda conexão ao solo em que caminhou e que o estruturou, em tempos de opressão, como Ser Humano de maior dimensão, humildade, partilha, consciência política e social, com um olhar no horizonte sempre mais profundo de equidade e justiça sobre o seu semelhante.

Na Escultura, inevitavelmente, o maior combate ontológico será sempre entre luz e sombra, assim como a própria vida em si. Por isso se esculpe com todo o Ser que somos e temos. António Guedes tinha uma capacidade singular de apurar até ao último centímetro de barro, com uma sapiência fora do vulgar, a marca do Escultor. Será, por ventura, o maior técnico Mestre nesta Arte ancestral, em solo Português. De norte a Sul de Portugal, a maioria das esculturas passaram pelo esmero técnico de António.

A Escultura hoje, obedecendo a valores de um tipo de Estética e também a fenómenos sociólogos, está mais distante ou resiliente ao bronze, e o que resta de paixão está apenas nos poucos e talvez cada vez menos que ainda a realizam. Por isso é que relembrar António Guedes é também reavivar os que testemunharam o seu notável talento com o gesso, destacando os seus irmãos, fiéis seguidores, Avelino, Adelino, Fernando, o incansável Amigo Ângelo e os seus genros Nelson Oliveira e Toni Santos; os escultores que consigo trabalharam; os que apenas ouviram contar; os que sabem o que a sua figura significa e os que compreendem que este é também referência incontornável de um tempo que a Escultura não conhecerá nunca mais.
Um forte abraço para a esposa Fernanda Guimarães , outro para a filha Susana Lopes e outro para a netinha Maria João (detentora de um sorriso igual ao do avô). 

Mendanha
Vânia Mendanha
Nuno Mendanha

7 Novembro 2021


Registo do mais antigo Mestre na Arte da passagem do barro para gesso,incontestavelmente, no processo clássico escultórico. Sessenta e dois anos de experiência impõem total respeito. A grande Maioria das esculturas que assolam superfície portuguesa têm a marca e qualidade deste Senhor. Na fisicalidade de mais um simples Escultor, assim como o restante clã Mendanha do ofício, lhe agradecemos, com um forte abraço, por tudo. A Escultura Portuguesa e sua sobrevivência muito lhe deve. Para Sempre.





Monumento a Fabrice Miguet "MIG" 2022 França Normandia Chambois

Logo no primeiro contacto que tivemos, adiantámos a ideia de se realizar uma escultura de contornos realistas. Procurámos, então, a melhor forma de dar seguimento a essa ideia sem que fosse restringida a liberdade criativa dos autores. Sublinhamos, desde já, a abertura e apoio que a associação demonstrou, revelando uma grande sensibilidade em campos tão problemáticos como os que se prendem com a arte. A ideia de então será elaborar uma composição organizada com elementos colhidos do legado de Fabrice Miguet que no presente ano nos deixou, em terras Irlandesas, na sua última exibição. De imediato, consultámos todos os possíveis meios de informação à procura de qualquer tipo de elementos ou indícios que revelassem a presença de quaisquer “reminiscências” consideradas de maior relevo. Passámos vários dias nesta fase de investigação. E, bem cedo, chegámos à conclusão de que, se havia muitos momentos com várias referências poderosíssimas, por outro lado, também gostaríamos de remeter a escultura para um tom mais universal e não centrado apenas no universo das corridas de motociclismo. Aqui chegados, havia a necessidade imperativa de pôr em prática aquilo que mais tínhamos em mente, que de um modo muito especial e directo era: a eterna paixão da Humanidade pela vertigem da velocidade, ou seja, a luta contra o tempo.

Tínhamos encontrado um filão precioso e crucial para explorar na escultura e para consubstanciar a procura da "Alma" Normanda: Porque os mitos -como Mig - transcendem os lugares onde nasceram e os próprios países, são universais. Não significando que na universalidade seja ignorado o "génio local" (genius loci). Por isso, o "húmus" da Normandia será sempre a grande referência que nos norteia.

De acordo com a ideia geral o húmus da terra transforma-se (transmuta-se) em moto e no corpo de Mig, por isso a zona das pernas e do tronco devem testemunhar essa metamorfose. Deste modo afastamo-nos do perigo de criar um Biblot decorativo e não uma obra de arte.

O "Mig" tem sido apelidado de "o francês mais rápido da Ilha de Man" graças a uma volta no circuito de Troféu Turístico da Ilha de Man em 18 min 36 s. Para a comunidade de motociclismo francesa, o "Mig" representou o modelo do piloto amador cuja existência é inteiramente dedicada à sua paixão. Morre na 4ª volta da corrida de Superstock no Grande Prémio de Motos de Ulster (Irlanda do Norte)

Estas breves ideias ou linhas de pensamento são apenas (e só) pontos de partida para que cada um possa construir as suas próprias narrativas, tentando descortinar os significados ocultos que só o próprio pode descobrir, sabendo que a obra de arte nunca se apresenta com significados determinados e fixos na origem. Pelo contrário, a verdadeira obra de arte, pelo poder do símbolo, sabe flutuar sempre para lá do conhecimento e das tentativas de descodificação total, abrindo-se indeterminadamente a novas ideias como acontece com a água límpida da fonte que eternamente se renova.
Logo, se a ideia geral do campeão aparece denotada explicitamente, deverá ser considerada a possibilidade simbólica que remete, conotativamente, para a ideia do lutador, que cada um traz dentro de si, postado que está perante o dom da vida, e tendo consciência de que esta exige toda a espécie de argumentos defensivos para poder travar esse combate final, no campo das ideias fronteiriças que interrogam sobre os fundamentos e sobre a essência da Condição Humana: assim contextualizado, o bronze, se por um lado representa Fabrice Miguet ( "o francês mais rápido da Ilha de Man" graças a uma volta no circuito de Troféu Turístico da Ilha de Man em 18 min 36 s, entre outros feitos, Para a comunidade de motociclismo francesa, o "Mig", também representa o modelo do piloto cuja existência é inteiramente dedicada à luta contra os próprios limites.), por outro simboliza o Ser Humano sempre que, no campo livre e perene das ideias, se interroga sobre as suas origens, sobre o significado da própria vida, e sobre o seu destino final. E foi nessa luta que o campeão Mig se transformou num mito. E os mitos, sabemo-lo, são eternos.

Os autores:

Mendanha
Vânia Mendanha
Nuno Mendanha 

30 Abril 2022